quarta-feira, março 19, 2025

EDITORIAL: A MENTIRA COMO INSTRUMENTO DE PODER

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A arma da extrema direita, a mentira, ela está mais viva do que nunca

Nada mais confortável do que ler apenas o que queremos acreditar. E políticos descobriram que podem sequestrar essa massa a seu favor e operar em um terreno fértil. A Primeira Guerra Mundial mudou a história da civilização. A partir daquele momento, atrocidades ganhariam uma nova dimensão, e o que a Europa viveu entre 1914 e 1918 abalaria os pilares da sociedade.

Ao fim do conflito, um esforço internacional se concretizou na criação de uma estrutura que tentaria impedir que aquela tragédia voltasse a ocorrer. O projeto ganhou sede em Genebra, com recursos e milhares de horas de reuniões. Mas a Liga das Nações fracassaria alguns anos depois.

Um outro fenômeno, ainda mais revelador, porém, foi notado nos anos que se seguiram ao fim do conflito. Cientistas de diversas áreas, profundamente machucados pela perda de alguns ou de todos os seus filhos nas trincheiras, passaram a recorrer a médiuns para que pudessem entrar em contato com os mortos. Desesperados, sem razão para viver ou acreditar, muitas daquelas mentes optaram por colocar a ciência de lado e simplesmente acreditar que poderiam falar com seus filhos.

A história comovente é contada por Jay Winter, em seu livro Sites of Memory, Sites of Morning. Feridos em suas almas, alguns deles deixaram suas convicções científicas na busca incerta por uma solução para sua dor.

Tal história pode ajudar a decifrar o motivo pelo qual, em plena era da internet, da ciência, do conhecimento e do acesso à informação, uma parcela da sociedade mundial, e especificamente a brasileira, escolhe acreditar numa promessa não comprovada, numa esperança, numa ilusão, e passa a disseminar fake news (notícias faltas).

Diante de um mundo repleto de incertezas e do questionamento constante da suposta normalidade, não é de se estranhar que aqueles desconfortáveis com o aparente mal-estar saiam em busca de promessas, certezas e de garantias, ainda que elas sejam fabricadas e mentirosas. E nada mais confortável do que ler apenas o que queremos acreditar. Sem o contraditório, sem a desconstrução.

Minada profundamente em seu orgulho, em um país com um exército de desempregados, corrupção, 60 mil assassinatos e descobrindo que não existe um atalho para o desenvolvimento, uma parte da sociedade brasileira opta por apenas consumir o que possa confirmar suas teses sobre as quais está construída. Infelizmente, muitas dessas pessoas são racistas e autoritárias.

E um grupo que recentemente esteve no poder descobriu rapidamente que, com atalhos intelectuais, e acima de tudo com mentiras, poderia sequestrar essa massa a seu favor e operar nesse terreno fértil.

A desinformação não é uma novidade de nossa era. Governos mantiveram por décadas operações de enormes proporções para censurar e manipular a opinião pública. Desta vez, seus artífices possuem um enorme arsenal tecnológico, com um poder inimaginável que chegou até nós há apenas alguns anos.

Assim, nesse contexto, prosperaram pseudonotícias como a do “Kit Gay”, a ameaça comunista iminente, a tese de que os termômetros estão nos locais errados, o poder ilimitado do Foro de São Paulo, o questionamento do formato do planeta – a Terra é redonda ou plana – e mesmo as ideias conspiratórias de um astrólogo de rede social – que felizmente já deve estar dormindo com o Capeta. A última dessas peças de desinformação foi transmita em rede nacional e dentro do próprio parlamento quando um blogueiro citou um suposto esquema de troca de armas nucleares entre Brasil e Cuba. E nesta semana, um “médico” afirmando que a Anvisa estaria proibindo que aviões carregados de remédios para o Rio Grande do Sul decolassem de aeroportos do centro do país.

Sobre a enxurrada de elementos tóxicos, essa turba de mal intencionados acompanham os discursos de líderes charlatães especializados na venda de ilusões – inclusive gente eleita e que está enfronhada no Congresso Nacional. Contam meias-verdades, apresentam falsas soluções simplistas e deixam uma brecha de silêncio suficiente para que aquelas populações preencham os vazios com seus preconceitos, seus temores e suas angústias.

Com um exército de contas falsas em redes sociais e uma milícia real pelo mundo digital, essa é uma receita que está pronta para transformar aquela versão dos fatos numa verdade chancelada para a manipulação. Essa gente pensa no Brasil Melhor? Não! Pensa apenas em si e nos seus “comparsas”, pensa apenas no poder.

Uma vez mais, nada de novo. Basta ver as estratégias adotadas para fazer implodir grupos de resistência com base na mentira, na divulgação de falsos informes e na destruição de reputações. No século 21, essas informações fabricadas de forma deliberada, chegam seguidas por um ataque diário contra os meios de comunicação, para conter os governos constituídos, numa estratégia orquestrada de deslegitimar qualquer questionamento. Constrói-se a legitimidade de canais paralelos da realidade, enquanto pilares da democracia são abalados numa estratégia por parte de um grupo que sabia que encontraria terreno fértil para isso.

A mentira, portanto, passou a ser no Brasil um instrumento de poder. E não é por acaso que, a cada quatro dias, o último presidente brasileiro dava uma declaração falsa ou imprecisa, segundo um levantamento feito pelo jornal Folha de S.Paulo. Não eram deslizes. Era um método. E esse método continua até hoje, só que com muito mais força e servindo a várias funções: como desviar a atenção das massas e da imprensa para evitar temas estruturais, recriar o passado para justificar decisões futuras ou simplesmente confundir atores que não ousariam cruzar essa linha.

luta contra a desinformação certamente passa hoje por uma questão de tecnologia e de Justiça. Mas o uso deliberado da angústia de uma população e o grau de aceitação de tais “notícias” deve servir de alerta para que se compreenda a dimensão dos problemas que estamos enfrentando. Não bastará fechar um site e punir um difusor de desinformação se temos, ao mesmo tempo, muitos adeptos do antigo governo confortavelmente publicando material falso sobre os mais variados assuntos: desde armas até computadores.

O antídoto terá de passar por uma sólida reação das instituições, por respostas sociais, pelo diálogo, pela aceitação das regras do jogo democrático e por um modelo que mostre que um caminho sustentável exige um longo trabalho. Também passa por uma educação que ensine a pensar, criticar e desconstruir. Não apenas a ser “útil” para o mercado de trabalho.

Uma verdadeira insurreição das mentes numa sociedade dividida e fragilizada não será construída da noite para o dia. No fundo, terá de ser permanente. Enfrentar a realidade da manipulação exigirá lidar com a dor, aceitar o contraditório, questionar as autoridades e construir uma sociedade em que líderes defendam os direitos de todos. Inclusive de seus adversários. E não apenas propaguem notícias mentirosas.

Desmontar tudo isso será um missão tão penosa quanto necessária. Mas a busca não poderá ser por um novo partido no poder ou pela troca – uma vez mais – de ideologia. Mas uma busca pela civilização. O debate sobre desinformação, portanto, não é sobre tecnologia. É sobre sociedade e democracia. E vai exigir muito mais que um debate na Câmara dos Deputados, regado com meias verdades e muitas mentiras.

Se não conseguirmos acabar ou pelo menos minimizar esse mar de notícias falsas que temos hoje, com toda certeza nossa sociedade é quem no final pagará essa conta. E pagará muito caro. O Ministério da Justiça terá que agir com mais rapidez e mandar a Polícia Federal atuar com mais rigor para colocar na cadeia esses disseminadores de coisas que não prestam. Inclusive governadores que se valem de fake news… como ocorreu na semana passada aqui em Santa Catarina.

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Redação
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Portal do notícias Folha do Estado especializado em jornalismo investigativo e de denúncias, há 20 anos, ajudando a escrever a história dos catarinenses.
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