Inconstitucionalidade como método político: a fabricação de crises e o ataque calculado ao Supremo Tribunal Federal
Brasília: Os protestos registrados neste fim de semana em diversas cidades do país evidenciaram um crescente descontentamento social com pautas percebidas como distantes das prioridades reais da população. As manifestações reuniram críticas diretas à chamada PEC da Blindagem, à emenda Pix, ao debate sobre a dosimetria de penas e à manutenção da escala de trabalho 6×1, apontada como exaustiva e incompatível com a dignidade do trabalhador. Em comum, os atos expressaram a rejeição ao uso do processo legislativo para autoproteção política e para a produção de normas controversas, enquanto temas sociais, econômicos e trabalhistas seguem sem respostas efetivas.
A denúncia feita neste artigo busca reabrir um debate essencial: a responsabilidade direta dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal sobre o funcionamento e a condução das Comissões de Constituição e Justiça. São as CCJs que detêm a atribuição constitucional de realizar a análise técnica e jurídica dos projetos antes de sua submissão ao plenário. Quando esse filtro falha, por negligência ou cálculo político, compromete-se todo o processo legislativo e transfere-se indevidamente ao STF o ônus de corrigir distorções que deveriam ter sido barradas na origem.
Tem se tornado recorrente, no ambiente político-institucional brasileiro, uma prática preocupante: a inclusão deliberada de dispositivos manifestamente inconstitucionais em projetos de lei, por meio de emendas parlamentares, especialmente por setores organizados da oposição. Não se trata de erro técnico, desconhecimento jurídico ou falha pontual do processo legislativo, mas de uma estratégia consciente, orientada à provocação do Poder Judiciário.
A Constituição Federal de 1988 é clara ao definir o papel do Supremo Tribunal Federal. Dispõe o art. 102, caput, que: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição.” O próprio texto constitucional detalha essa atribuição. O art. 102, inciso I, estabelece a competência do STF para processar e julgar, originariamente, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC). Já o inciso III confere à Corte a palavra final no julgamento de causas decididas em única ou última instância, quando a decisão contrariar a Constituição, declarar a inconstitucionalidade de lei federal ou validar norma local em afronta ao texto constitucional.
Esse arranjo estrutura o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, tanto em sua forma concentrada quanto difusa, e não deixa margem para interpretações voluntaristas sobre suposta “usurpação” de competências pelo Judiciário. A jurisprudência do STF é sólida nesse sentido. No julgamento da ADI 3.367/DF, o Tribunal assentou que o controle de constitucionalidade não configura interferência indevida entre Poderes, mas exercício legítimo de função constitucional. Na ADPF 130, que afastou a Lei de Imprensa, reafirmou-se que a supremacia da Constituição se impõe inclusive sobre opções políticas do legislador.
Mais recentemente, no julgamento da ADI 6.630, o STF reiterou que o princípio da separação dos Poderes não impede o controle judicial de atos legislativos quando há violação constitucional, destacando que: “A separação de Poderes não pode ser invocada como escudo para a produção normativa incompatível com a Constituição.”
Diante desse quadro, é juridicamente inconsistente sustentar que o STF “usurpa” competências do Legislativo ao declarar a inconstitucionalidade de leis ou emendas. O que se verifica, em diversos episódios, é a produção consciente de normas viciadas, com o objetivo político de provocar a Corte e, posteriormente, explorar a decisão judicial como instrumento de ataque institucional.
O exemplo recente: o chamado “PL da Dosimetria”
Esse método ficou evidente com a aprovação recente do chamado Projeto da Dosimetria, que altera critérios de aplicação e execução de penas, com potencial impacto direto sobre condenações já fixadas pelo próprio Supremo Tribunal Federal. O texto aprovado incorporou dispositivos que suscitam sérias dúvidas constitucionais, especialmente quanto à separação de Poderes, à segurança jurídica e aos limites da atuação legislativa sobre decisões judiciais definitivas.
A aprovação de um projeto com esse perfil não pode ser tratada como mero dissenso jurídico. Trata-se de um exemplo concreto de norma elaborada já sob a expectativa de judicialização, cujo efeito político se projeta não na vigência da lei, mas na reação à sua provável declaração de inconstitucionalidade. Após a previsível atuação do STF, os mesmos atores que permitiram ou promoveram o vício normativo passam a acusar a Corte de “ativismo judicial” ou recorrem à retórica da chamada “ditadura de toga”. Trata-se de uma inversão deliberada da lógica constitucional: cria-se o problema no Legislativo e transfere-se ao Judiciário a pecha de responsável pela crise.
De quem é a responsabilidade institucional?
A Constituição atribui ao Parlamento — especialmente às Comissões de Constituição e Justiça (CCJ) — o dever de realizar o controle preventivo de constitucionalidade. É função institucional da CCJ barrar projetos ou emendas incompatíveis com a Constituição antes que avancem no processo legislativo.
Quando esse dever é conscientemente descumprido, por omissão ou por decisão deliberada, cria-se uma crise artificial, posteriormente explorada politicamente contra o Judiciário. O STF, nesse contexto, não invade competências: ele corrige uma falha — ou um desvio — produzido no próprio processo legislativo.
A pergunta correta, portanto, não é “por que o STF derrubou a lei?”, mas sim: por que a CCJ permitiu que um dispositivo sabidamente inconstitucional avançasse até o plenário?
Remédios jurídicos e institucionais possíveis
Do ponto de vista jurídico, o sistema já dispõe de instrumentos para correção posterior, como a ADI, a ADPF e o controle difuso. No entanto, esses mecanismos são curativos, não preventivos. O problema está na banalização do uso do Judiciário como etapa final de um jogo político previamente calculado.
Do ponto de vista institucional, é necessário fortalecer a responsabilização política interna no Parlamento, inclusive com registro formal de pareceres, transparência na votação de constitucionalidade e maior rigor técnico nas CCJs. A tolerância com a inconstitucionalidade deliberada corrói o processo legislativo e deslegitima o próprio Parlamento.
Cabe denúncia ou ação civil pública?
Do ponto de vista jurídico, a mera aprovação de projeto de lei com vício de inconstitucionalidade não configura, por si só, crime, nem gera automaticamente responsabilidade penal individual. A atividade legislativa é, em regra, protegida pela imunidade material parlamentar. Contudo, quando há indícios de atuação deliberada, reiterada e consciente para burlar o controle preventivo de constitucionalidade, com desvio de finalidade institucional, o debate deixa o campo estritamente político e passa a tangenciar a esfera da responsabilidade jurídico-institucional.
Nesses casos, pode-se cogitar a apuração por órgãos de controle interno do Parlamento, por Comissões de Ética, e, em situações mais graves, a provocação do Ministério Público para análise de eventual ato de improbidade administrativa por violação a princípios da administração pública, especialmente os da legalidade, moralidade e finalidade, quando demonstrado que a condução do processo legislativo foi instrumentalizada para produzir instabilidade institucional consciente.
Ação Civil Pública como instrumento de tutela institucional
A Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/1985) pode ser juridicamente viável não para questionar o mérito legislativo, o que seria vedado, mas para proteger interesses difusos e coletivos relacionados ao regular funcionamento das instituições democráticas, à transparência e à observância do devido processo legislativo constitucional.
Uma ACP poderia, por exemplo, buscar:
X: a declaração de nulidade de atos administrativos internos que violem regras regimentais essenciais das CCJs;X: a imposição de obrigações de fazer, como a exigência de parecer técnico-jurídico fundamentado e nominalmente assinado;X: o fortalecimento de mecanismos de transparência e publicidade nas deliberações de constitucionalidade.
Não se trata de judicializar a política, mas de impedir que o processo legislativo seja conscientemente desvirtuado, transformando a inconstitucionalidade em ferramenta política e o STF em alvo de crises artificiais. A ACP, nesse contexto, funcionaria como instrumento de defesa do Estado de Direito, e não de interferência indevida entre Poderes.
Um limite necessário ao expediente deliberado
É preciso avançar no debate sobre a responsabilização política e ética de parlamentares que utilizam, de forma reiterada e consciente, a inconstitucionalidade como método de ação política. Não se trata de cercear a atividade legislativa, mas de proteger a Constituição contra seu uso estratégico como ferramenta de confronto institucional.
A democracia não se fortalece quando a ilegalidade constitucional é normalizada como instrumento de retórica. Ao contrário, enfraquece-se quando se tenta transformar o guardião da Constituição no vilão de crises que não criou.

José Santana | Jornalista
Editor e fundador do Folha do Estado. Ex-militar do EB –
Pós-graduado em Direito Constitucional e po.
Bacharel em Gestão Pública e Administrativa.
Especialista em jornalismo político, jurídico e institucional.
Defensor da liberdade de imprensa e do Estado Democrático de Direito.
🪪 MTB 3982/SC
Editor e fundador do Folha do Estado. Ex-militar do EB –
Pós-graduado em Direito Constitucional e po.
Bacharel em Gestão Pública e Administrativa.
Especialista em jornalismo político, jurídico e institucional.
Defensor da liberdade de imprensa e do Estado Democrático de Direito.
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