A produção de mel é barata por não precisar de roupas especiais
 “Foi uma estiagem muito diferente, foi mais forte”, disse Aldair Godinho, meliponicultor.
“Foi uma estiagem muito diferente, foi mais forte”, disse Aldair Godinho, meliponicultor.
Na comunidade de Anã, na reserva extrativista Tapajós-Arapiuns, Aldair Godinho trabalha com o cultivo do mel de abelhas-sem-ferrão, um grupo nativo do Brasil. A produção é uma das atrações de quem visita o local, além de ser comercializada em outras regiões. Para Aldair, a produção de mel é barata – por não precisar de roupas especiais – e uma fonte de renda sustentável. Mas, no ano passado, as coisas complicaram. Devido à seca, Aldair viu uma queda brusca na produção e teve que contar com a ajuda da cooperativa para enfrentar o cenário.
Além do turismo ter diminuído porque a acessibilidade à comunidade ficou mais difícil, as abelhas não conseguiam mais produzir mel. “Se eu não tiver mel, não posso fazer propaganda disso, não posso trazer meus turistas para conhecer. Então, preciso que tudo esteja funcionando”, contou ele. A estimativa foi a de que a produção caiu em cerca de 50%.

O engenheiro-agrônomo Rogério Alves explica que o clima é essencial para as abelhas. “É o que controla todo o trabalho delas”, explica.
O clima rege a secreção de néctar e pólen pelas plantas. Fatores como a precipitação, ventos, insolação, calor e umidade influenciam diretamente essa secreção. O tempo seco não necessariamente é prejudicial, mas necessita de atenção quando está somado a temperaturas mais altas, o que também influencia o próprio comportamento das abelhas.
– Com a temperatura alta, há também pouca umidade do solo e pouca água na planta. Então, para não perder água, ela não secreta néctar – afirma Alves. “A depender do solo, a vegetação vai ser mais rica ou mais pobre”. Todos os produtos feitos da abelha – seja o mel ou a cera – dependem desse ecossistema.
O calor também foi fator que prejudicou outros setores comerciais da comunidade. “O produtor de peixe perdeu muito. Aqueles que estavam prontos para o abate morreram, porque a água esquentou”, conta Aldair.
Com a comercialização limitada, Aldair teve que recorrer à cooperativa Turiarte e ao Governo Federal. “Recebíamos cestas básicas da cooperativa, que foi muito importante para nós nesse momento. Além disso, como moramos em uma área federal, também recebemos os benefícios do governo para enfrentar a estiagem. Com isso, íamos nos virando [até a seca passar].”
A seca passou e agora a produção de mel está mais próxima do que é considerado normal.
– Este ano já recebemos muito mais turistas. Além disso, já abriu uma florada de murta branca e a gente já sabe que as abelhas já foram coletar a néctar porque ainda tá chovendo. Tem Cipó de Fogo, Ingá-branco. Quando eu ia dar comida para os peixes, via como bonito estava e as abelhas também. Nós, meliponicultores, estamos com uma expectativa de que agora vamos ter bastante mel – afirma.
Apesar de 2025 mostrar um bom prognóstico sobre a produção de mel, cientistas alertam que as secas enfrentadas na Amazônia tendem a piorar nos próximos anos e que é necessário tomar medidas de prevenção para proteger as comunidades.
ENTENDENDO A SECA
 A estiagem sentida na Amazônia em 2024 foi reflexo de uma seca severa que acometeu a região em 2023, registrando marcos históricos. Essa seca ocorrida em 2023 foi influenciada por dois eventos meteorológicos importantes: o El Niño e o aquecimento do Atlântico Tropical Norte, ambos estão ligados a um fenômeno anômalo de aquecimento das águas do mar.
A estiagem sentida na Amazônia em 2024 foi reflexo de uma seca severa que acometeu a região em 2023, registrando marcos históricos. Essa seca ocorrida em 2023 foi influenciada por dois eventos meteorológicos importantes: o El Niño e o aquecimento do Atlântico Tropical Norte, ambos estão ligados a um fenômeno anômalo de aquecimento das águas do mar.
O El Niño envolve o aquecimento das águas do Oceano Pacífico. Ele ocorre com uma certa periodicidade, em torno de dois a sete anos. Com o aquecimento das águas do mar, a circulação do ar na atmosfera muda, alterando a distribuição de chuvas e das temperaturas no planeta. No caso do Brasil, os principais efeitos do El Niño são secas severas no norte e nordeste e chuvas intensas no sul.
Já o aquecimento do Atlântico Tropical Norte faz referência a uma zona do mar que está próxima à linha do Equador – uma região que integra grande parte da Amazônia brasileira. Quando essa região fica mais quente também há uma mudança no padrão de chuvas.
– As nuvens são ‘empurradas’ para o hemisfério norte e, consequentemente, há uma perda de umidade que estaria entrando do Oceano Atlântico em direção ao coração da Floresta Amazônica. Essa umidade ao norte, inclusive, é o que vai alimentar os furacões que ocorrem na região do Caribe – explica Renato Senna, pesquisador do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia).
Com ambos fenômenos meteorológicos ocorrendo ao mesmo tempo na Amazônia, a seca, que já era esperada pelas comunidades como uma estação do ano, chegou muito mais intensa. “Eles fortaleceram essa condição de grande seca. Por isso que dizemos que foi uma grande seca de 2023 a 2024. Não houve uma nova temporada de estação de chuvosa, foram 18 a 20 meses com pouquíssimas chuvas”.
Mas os fenômenos que influenciaram a seca não para por aí. O World Weather Attribution, uma organização global de pesquisadores sobre o clima, produziu um estudo que concluiu que a seca de 2023 foi tão severa na Amazônia também por outro fator: as mudanças climáticas.
– As mudanças climáticas acentuam tudo, mas nem sempre é a causa. O El Niño é um fenômeno que causa seca na Amazônia, mas com as mudanças climáticas os efeitos ficam desproporcionais. A conclusão do estudo de 2023 é a de que o fenômeno gerou uma falta de precipitação 10 vezes mais intensa, por exemplo. E a seca hidrológica ficou 30 vezes maior. Já tivemos El Niños no passado que causam secas, mas com as mudanças climáticas, os efeitos se acentuam. Se antes a seca do El Niño era moderada, agora é excepcional”, explica a professora Regina Rodrigues, especialista em mudanças climáticas da UFSC e que participou do estudo.
Nesse cenário, a seca severa aparece no ano seguinte por um efeito dominó. “Quando já tem um ano muito seco, em que os níveis de água do ano anterior já são baixos, a tendência é de continuar a seca. Em 2023 vimos níveis do rio bem baixos, a estação chuvosa não foi suficiente, então entra em uma fase de estiagem prolongada. Por isso, 2024 também sofreu com uma seca intensa”.
 Apesar de agora a seca intensa parecer um problema ultrapassado, os cientistas alertam que é necessário se preparar para os próximos eventos.
Apesar de agora a seca intensa parecer um problema ultrapassado, os cientistas alertam que é necessário se preparar para os próximos eventos.
“No caso da bacia do Tapajós [onde está a comunidade de Anã], os rios já estão atingindo uma normalidade. Mas os rios que cruzam o Amazonas em grande parte das suas bacias estão com uma seca bastante pronunciada nesse momento”, afirma Senna.
– Seca na região amazônica significa um caos absoluto para as populações ribeirinhas. Traz fome, sede, falta de acesso à educação, a medicamentos. É isolamento. Fora que há outros eventos concomitantes com essas grandes secas, como as ondas de calor, que geram impactos para a saúde – Diz Renato Senna, pesquisador do Impa.
ALERTA PARA O FUTURO
Para os pesquisadores, a seca da Amazônia é um alerta para que ações contra as mudanças do clima e coibição do desmatamento sejam feitas de maneira emergencial. “Temos algumas medidas paliativas para enfrentar grandes secas como essa, mas se não diminuirmos as emissões de carbono, estaremos só tratando os sintomas, e não a causa do problema”, afirma Rodrigues. Além disso, a atenção às comunidades ribeirinhas em planos de políticas públicas também aparecem como um fator de relevância para o enfrentamento às secas severas.
– Enquanto não vem essa decisão sobre o carbono, que vem de alto nível dos governos e empresas, é necessário subsidiar essas comunidades – diz. “Cientistas e governos poderiam oferecer soluções específicas para as comunidades por meio de estratégias para que eles conseguissem sobreviver nesse período de seca”, defende a pesquisadora.
A gestão de terras na região também é apontada como uma importante medida para evitar as secas severas. “Se as condições atmosféricas estão propícias à seca, mas existe uma floresta em pé que retém a umidade, o solo fica mais úmido e isso inclusive ajuda a não alastrar fogo”, explica Rodrigues.
Quando a árvore está de pé, mesmo que o solo esteja seco, elas conseguem acessar por meio das raízes as águas profundas e faz essa evapotranspiração que ajuda a manter o ambiente mais úmido. Se derruba a árvore, derruba todo esse mecanismo.
REGINA RODRIGUES, PROFESSORA DA UFSC
As abelhas, inclusive, têm papel fundamental na preservação da floresta. Elas são responsáveis pela polinização de grande parte das espécies da Amazônia. Um exemplo é a palmeira do açaí. Um estudo da Embrapa em parceria com a UFPA e a UFRA publicado na revista científica Neotropical Entomology em 2020 mostrou que as abelhas nativas fazem 90% do trabalho de polinização da espécie.
– A abelha é importante para a manutenção da biodiversidade e para a produção. Ela faz com que os frutos saiam melhores, por exemplo. E isso faz com que haja uma perpetuação da espécie. Ela é importante não só para polinizar, mas também pela qualidade do produto. Se a abelha desaparece, muitas espécies vão sofrer. E elas estão ameaçadas pela destruição do meio ambiente – afirma Alves.
Para Senna, outro fator que garante a preservação da floresta são as populações ribeirinhas e indígenas.
– Precisamos de políticas públicas muito adequadas para manter essas populações na região em tempos de enfrentamento das grandes secas – afirma. “É necessário garantir que as populações tenham água e alimentação e não fiquem no isolamento total nesse período. Essa população tem a capacidade de denúncia sobre as irregularidades na floresta, o que é extremamente importante”.
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Texto: Heloísa Barrense – UOL
A repórter viajou a Alter do Chão a convite do Sistema OCB – Organização das Cooperativas Brasileiras.



 
                                    




