O projeto de lei antifacção apresentado pelo governo federal endurece penas, mas o Brasil continua sem regulamentar o artigo 144 da Constituição. Três décadas e meia de omissão legislativa mantêm o país desarmado diante do crime organizado
O governo federal acaba de enviar ao Congresso, em regime de urgência, o chamado Projeto de Lei Antifacção, anunciado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva como uma resposta firme ao avanço do crime organizado. O discurso é forte, as medidas são duras, e a intenção parece nobre. Mas há um problema que nenhum governo, de esquerda ou de direita, teve coragem de enfrentar: o Brasil continua sem uma lei que regulamente o artigo 144 da Constituição Federal, a base do sistema de segurança pública nacional.
São 37 anos de omissão legislativa, de sucessivos governos e congressos que se sentaram sobre o texto constitucional e negligenciaram a criação de uma política de segurança de Estado, substituindo-a por leis emergenciais, improvisadas e de efeito midiático.
A Constituição de 1988 determinou que a segurança pública seria “dever do Estado e direito de todos”, cabendo à União organizar, coordenar e integrar as forças de segurança.
Nada disso foi feito.
A OMISSÃO QUE CUSTA VIDAS
Essa lacuna transformou o país num terreno fértil para o crime organizado, que opera com mais unidade, hierarquia e planejamento do que o próprio Estado.
Enquanto o Congresso legisla para aumentar penas e criar bancos de dados, as facções se expandem como redes empresariais, explorando fronteiras, controlando comunidades e infiltrando-se nas estruturas públicas.
No Rio de Janeiro, o colapso é a prova visível dessa falência: governadores, sem diretrizes nacionais, criam “colunas de enfrentamento” improvisadas, enquanto a população vive sitiada entre milícias, facções e a ausência de um Estado organizado.
O que se vê é o caos da descoordenação institucional, um mosaico de forças policiais isoladas, sem comunicação eficiente, sem sistema integrado de inteligência e sem comando estratégico.
O PROJETO QUE FORTALECE O ENDURECIMENTO, MAS NÃO O ESTADO
O projeto antifacção propõe endurecimento penal: homicídios sob ordem de facções passam a ser hediondos; líderes de organizações criminosas enfrentam penas ampliadas; e agentes públicos envolvidos poderão ser afastados. Medidas corretas, mas insuficientes.
O Estado brasileiro não precisa apenas de penas mais longas, precisa de estrutura, integração e comando.
Sem a regulamentação do artigo 144, cada governo improvisa sua política de segurança conforme o cenário eleitoral ou o clamor das redes sociais.
Não há planejamento de longo prazo, não há coordenação entre União, Estados e Municípios, e não há base legal que defina, de forma estável, responsabilidades e protocolos.
A COVARDIA LEGISLATIVA E O PREÇO DA OMISSÃO
Por quase quatro décadas, deputados e senadores preferiram o conforto da omissão à coragem da reforma.
O resultado é um país em que a criminalidade se sofisticou e o Estado se burocratizou.
Enquanto criminosos operam com contas no exterior, redes digitais e alianças transnacionais, as forças de segurança continuam presas a sistemas arcaicos e desarticulados.
A segurança pública brasileira não fracassou por falta de policiais, mas por falta de legisladores corajosos.
O Congresso é o principal responsável por este vácuo institucional , um vácuo que corrói a autoridade estatal, a confiança da sociedade e a própria soberania nacional.
NÃO SE COMBATE O CRIME COM IMPROVISO
É preciso dizer com clareza: o projeto antifacção é paliativo.
Aumentar penas não é o mesmo que fortalecer o Estado.
O verdadeiro combate ao crime organizado exige planejamento constitucional, integração de inteligência, fronteiras seguras e legislação estável de Estado e não de governo.
Enquanto o Brasil seguir reagindo a cada crise com medidas pontuais e discursos inflamados, continuará perdendo a guerra que o crime já entendeu como estrutural.
Sem lei complementar, o país não tem sistema e sem sistema, não há segurança.
CONCLUSÃO: A URGÊNCIA É CONSTITUCIONAL
O endurecimento penal pode impressionar, mas não substitui o que falta há 37 anos: uma lei complementar que organize, unifique e fortaleça o sistema nacional de segurança pública.
Sem isso, o Brasil continuará enxugando gelo, punindo o efeito, mas ignorando a causa.
É hora de o Congresso Nacional cumprir a Constituição que jurou respeitar.
A omissão já dura quase quatro décadas. E o preço dela se mede em sangue, medo e descrédito nas instituições.
Editorial – Folha do Estado
Opinião institucional sobre a crise de segurança pública e a omissão legislativa no cumprimento da Constituição Federal.








