A utilização da fé, que antigamente envolvia os menos letrados, hoje avançou e já atinge os intelectuais, pela fé ou não…
O uso político da fé em Cristo tornou-se um dos maiores escárnios deste milênio. A instrumentalização da religião como estratégia eleitoral, antes vista de forma episódica, transformou-se em método estruturado de manipulação emocional, cultural e simbólica. Em todo o país e em diferentes espectros ideológicos observa-se um movimento que converte fiéis em massa de manobra, pastores em cabos eleitorais e templos religiosos em verdadeiros comitês de campanha.
Trata-se de um fenômeno que não surge do acaso. Desde os anos 1980, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da Fundação Getulio Vargas (FGV) e do Centro Latino-Americano de Estudos sobre Religião (CLER) vêm alertando para o crescimento da “teologia política eleitoral”, marcada pela apropriação de símbolos sagrados para legitimar projetos de poder. O professor Paul Freston, referência brasileira e internacional, já advertia que a fusão entre fé e política partidária gera um fundamentalismo funcional: o eleitor não vota mais em um programa, mas em um “ungido”, um “enviado”, um “salvador da pátria”.
RAÍZES HISTÓRICAS DE UM DESVIO ANTIGO
Desde o século IV, quando o imperador Constantino oficializou o cristianismo como religião do Império Romano, a fusão entre fé e poder político produziu distorções profundas. Teólogos como Agostinho advertiram que o Reino de Deus não se confunde com os reinos deste mundo, enquanto Tomás de Aquino reforçou que a política deve ser norteada pela razão pública e não por imposições religiosas.
O BRASIL REPETIU, E EM ALGUNS MOMENTOS, AMPLIOU ESSE PADRÃO
Do padroado colonial, passando pela Guerra de Canudos e pela instrumentalização religiosa durante a Ditadura Militar, a sobreposição entre poder político e autoridade espiritual sempre gerou rupturas sociais. No século XXI, essa prática ganha tecnologia, marketing e estratégia digital. (O padroado colonial foi um acordo entre a Coroa Portuguesa e o Papa que estabelecia um sistema de controle do Estado sobre a Igreja Católica na colônia).
A NOVA ENGENHARIA DO PODER RELIGIOSO
Pesquisadores como Paul Freston, Ricardo Mariano e Magali Cunha demonstram que o uso político da fé opera em três camadas:
Controle simbólico apropriação de narrativas bíblicas para legitimar poder.
Mobilização emocional uso da fé para provocar medo – culpa ou devoção vinculada a um candidato.
Conversão de capital religioso em capital eleitoral – líderes espirituais atuam como operadores políticos.
ASSIM, MULTIPLICAM-SE DISTORÇÕES:
- templos transformados em espaços de propaganda velada;
- cultos convertidos em atos de campanha;
- “ungidos políticos” apresentados como enviados divinos; discursos de “batalha espiritual” utilizados para demonizar adversários.
O resultado é devastador: crentes usados como massa de manobra; pastores transformados em cabos eleitorais; o Cristo do Evangelho substituído pelo “Cristo de campanha”; e templos convertidos em verdadeiros comitês eleitorais.
A história recente oferece exemplos contundentes desse risco. No século XX, movimentos políticos na Europa e na América Latina instrumentalizaram discursos religiosos para justificar regimes autoritários, perseguições ou a construção de inimigos públicos. Da Alemanha nazista à Espanha franquista, da Nicarágua sandinista à ditadura de Stroessner no Paraguai, o uso da fé como ferramenta política produziu consequências profundas e, em muitos casos, trágicas.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu como cláusula pétrea o princípio da laicidade do Estado, garantindo liberdade de crença sem permitir que qualquer religião determine políticas públicas ou interfira na soberania popular. Juristas como Luís Roberto Barroso (STF) e Clèmerson Clève (UFPR) reforçam que Estado laico não é Estado antirreligioso é Estado neutro, que protege todas as crenças ao impedir que uma delas se imponha sobre a cidadania.
Mesmo assim, campanhas eleitorais têm utilizado de forma indevida expressões como “voto de Deus”, “candidato escolhido pelo Senhor”, “luta espiritual” e “inimigos da fé” – criando uma falsa guerra teológica que transforma adversários políticos em inimigos divinos. Essa lógica desumaniza o debate e cria um ambiente propício à perseguição, ao fanatismo e à radicalização.
Do ponto de vista pastoral, inúmeros líderes cristãos sérios e comprometidos têm repudiado essa distorção. O teólogo Russell Shedd, antes de seu falecimento, advertiu que “o Evangelho não é bandeira de partido, e transformá-lo em arma política é profanação”. Já o pastor e escritor Eugene Peterson, amplamente respeitado no meio evangélico, classificou o fenômeno como “idolatria moderna”, pois substitui Deus por um projeto de poder.
É nesse contexto que se torna essencial lembrar o que o próprio Cristo ensinou sobre o Reino de Deus. Seu propósito é espiritual, universal e soberano, não se subordina a governos humanos, eleições, candidaturas ou disputas partidárias. Confundir fé com palanque é trair o ensino bíblico e manipular consciências.
A VISÃO ANALÍTICA E EDITORIAL
O jornalista José Santana, graduado em Gestão Pública Administrativa e especialista em Direito Constitucional, resume o problema com precisão:
“Quando a fé é transformada em instrumento eleitoral, dois patrimônios são violados ao mesmo tempo: a espiritualidade das pessoas e a integridade da democracia.
Cristo não autorizou que Ele próprio fosse usado como ferramenta de poder – e a Constituição não permite que a religião seja usada como mecanismo de manipulação política.
“Cristo ensinou que o Reino de Deus não é político, não se confunde com governos humanos e jamais será condicionado por agendas eleitorais. Os planos divinos não dependem e não podem ser distorcidos por estratégias de poder”.
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Da Redação | Folha do Estado













