Entre a comunicação oficial e o desvio de finalidade
Desde as décadas de 2000 e 2010, temos observado o surgimento – ou ressurgimento – de veículos de comunicação que, muitas vezes, operam à sombra do interesse público. São jornais e jornalistas que se beneficiam direta ou indiretamente de recursos provenientes de estatais ou de verbas públicas, geralmente por meio de contratos de publicidade institucional, patrocínios cruzados ou repasses via agências de comunicação.
Um caso emblemático chama atenção: em uma cidade litorânea, um veículo de comunicação surgiu do nada, sem histórico editorial, sem estrutura visível, e rapidamente venceu licitações, foi favorecido em compras diretas e passou a receber recursos públicos por meio de agências intermediárias. Os valores destinados a esse veículo ultrapassam em até 10 vezes os repasses recebidos por jornais tradicionais, com décadas de circulação comprovada e reputação consolidada.
Esse tipo de operação revela o desvio de finalidade da publicidade institucional, que deveria ser utilizada exclusivamente para fins de interesse público, como a divulgação de atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos, conforme determina o art. 37, §1º, da Constituição Federal. Este dispositivo estabelece que:
“A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos”.
Ao utilizar veículos sem credibilidade ou com fins claramente pessoais, as administrações públicas violam também os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência – todos consagrados no caput do artigo 37 da Constituição Federal.
Além disso, o uso irregular desses recursos pode configurar ato de improbidade administrativa, nos termos da Lei nº 14.230/2021, que atualizou a Lei de Improbidade Administrativa. O artigo 11 prevê sanções para condutas que atentem contra os princípios da administração pública, como o favorecimento de terceiros com recursos públicos e a violação do dever de transparência.
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000) também exige que os gastos públicos estejam vinculados ao interesse coletivo, com publicidade, planejamento e eficiência, impondo limites à execução orçamentária e responsabilização dos gestores.
Em paralelo, o Ministério Público, os Tribunais de Contas e a Polícia Judiciária têm o dever constitucional e legal de fiscalizar a correta aplicação dos recursos públicos. Casos como esse devem ser investigados com base em movimentações atípicas, vínculos políticos e eventuais favorecimentos indevidos – o que pode configurar, além de improbidade, crimes contra a administração pública.
Como bem disse um político contemporâneo: “há dinheiro sendo desviado que merece a atenção da polícia judiciária.” De fato, quando a comunicação institucional se torna uma engrenagem do favorecimento ilícito, é urgente que os órgãos de controle atuem com rigor para identificar e punir essas práticas.
Agora, com o quase fim dos veículos impressos – que representam um custo ambiental elevado -, essas publicações se tornam ainda mais obsoletas e, paradoxalmente, continuam sendo usadas como fachada para escoamento de recursos públicos. Isso impõe uma reflexão séria sobre o modelo de financiamento da mídia institucional e os critérios de escolha dos veículos contratados.
Nota importante: é necessário que os governos – nas esferas federal, estadual e municipal -, bem como os órgãos de fiscalização, controle e meio ambiente, reflitam seriamente sobre os repasses milionários realizados pelas SECOMs a veículos impressos obsoletos. Tais repasses não apenas geram elevados custos financeiros e ambientais, como são claramente contraproducentes do ponto de vista informacional e institucional. Muitos desses jornais, que não têm mais função pública real, tornaram-se meros instrumentos de favorecimento político ou, na prática, servem apenas como papel para forrar caixas ou recolher fezes de animais domésticos – uma caricatura cruel da decadência da comunicação pública sem critérios.
É hora de repensar e regulamentar com mais rigor a publicidade institucional, estabelecendo critérios técnicos, objetivos e transparentes. A comunicação estatal deve servir à cidadania, e jamais ser um instrumento de autopromoção de agentes políticos ou de financiamento disfarçado de aliados do poder.