Dois golpes rondam o Brasil. Um precisa ser esclarecido, o outro tem que ser lembrado. E há um fio que liga os dois eventos
Clarice Herzog, viúva do jornalista Wladimir Herzog, carregando flores em ato que marcava dez anos de sua morte em 1985 — Foto: Antonio Luiz Silva / Agência O Globo.
No dia 24 de maio de 2017, a Corte Interamericana de Direitos Humanos se reuniu em San José, na Costa Rica, para ouvir as partes no caso Vladimir Herzog. De um lado estava Clarice, uma mulher que insistia em lembrar. Do outro, o Estado brasileiro representado por servidores da Advocacia Geral da União (AGU) e um criminalista contratado, Alberto Toron, para defender a tese de que era preciso esquecer. Clarice estava ali para pedir punição ao Estado brasileiro pelo assassinato do seu marido, Vladimir Herzog, no II Exército. Advogadas da AGU interrogaram Clarice tentando fazê-la cair em contradição. Um pouco antes, Toron havia sustentado que “a coisa julgada não pode ser ofendida”, como se fosse caso encerrado. Clarice do plenário gritou: “não é nada disso, está tudo errado”.
O Brasil jamais condenou alguém pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog, nem qualquer responsável pelos outros mortos sob tortura, executados ou desaparecidos, portanto, nunca houve um caso encerrado.
Eunice Paiva também carregou, por todo o tempo que pôde, a bandeira de que era preciso lembrar. Seu marido, Rubens Paiva foi preso por oficiais da Aeronáutica, torturado até a morte na Polícia do Exército e seu corpo nunca apareceu. Crime continuado de ocultação de cadáver. Viúva com cinco filhos, Eunice decidiu enfrentar o regime. Cursou direito e se aliou à luta pela anistia.
Num roteiro tipicamente brasileiro, essa mesma Lei da Anistia, por caminhos tortuosos, virou o pretexto para impor o esquecimento sobre os crimes da ditadura. A interpretação até do STF é de que a lei perdoou também os crimes dos agentes do Estado. A ADPF 320, proposta pelo PSOL, em 2014, questiona essa interpretação, usando os princípios do direito internacional pelos quais crimes contra a humanidade são imprescritíveis. Essa ação está faz uma década no STF, na gaveta do ministro Dias Toffoli.
O presidente Lula determinou silêncio oficial sobre o golpe de 64, que agora completa 60 anos. Disse que não se devia ficar remoendo o assunto porque isso faz parte do passado e ele está mais preocupado com o golpe de 8 de janeiro de 2023, e quer “tocar o país pra frente”.
Lula confundiu todos os tempos. Dois golpes rondam o Brasil. Um precisa ser esclarecido, o outro tem que ser lembrado. E há um fio que liga os dois eventos. O ex-presidente Jair Bolsonaro defendeu a ditadura militar, mandou os quartéis comemorarem a data, inspirou seus seguidores a pedirem nas ruas um novo AI-5, homenageou torturadores, atraiu lideranças militares para um assalto às instituições. Desta forma foi preparado o atentado de 8 de janeiro com o objetivo de impedir que o presidente Lula assumisse. Lula, justo ele, não pode pedir que o país não se lembre.
No país dos esquecimentos, a ideia de Lula tem sido defendida por muita gente. A tese é de que os militares poderiam ficar melindrados, já que eles não vão comemorar o 31 de Março, e caberia ao poder civil não lembrar o que houve. E, que, com a possibilidade de punição dos agentes da intentona recente, melhor esquecer o golpe que durante 21 anos vitimou a democracia brasileira.
É uma estranha distorção da realidade. Exatamente pelo que acabou de acontecer é preciso refletir muito mais sobre a recorrente intervenção dos militares na vida brasileira. Porque houve uma ameaça concreta de repetição da História é essencial fortalecer a democracia lembrando o horror que foram aqueles 21 anos. Os jovens que não viveram precisam saber, os mais velhos precisam lembrar. Nenhum país vira as costas para a própria História, sem o risco de cair no mesmo erro.
Clarice venceu aquele julgamento de 2017 e a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que o Estado brasileiro julgasse e condenasse os responsáveis pela tortura e morte de Vladimir Herzog.
Naquela tarde, no tribunal, Clarice lembrou a saga de dona Zora, mãe do Vlado. “Eles eram judeus. Ela pegou todas as suas joias e entregou a um homem, um alemão que disse que a ajudaria a fugir da Iugoslávia com seu marido e filho. Mas o homem os deixou num hotelzinho e sumiu. A família teve que atravessar a fronteira a pé, ela com o filho nos braços.” Dona Zora chegou a uma conclusão trágica em outubro de 1975. “Salvei meu filho dos nazistas para ele morrer aqui”. Há no nosso passado histórias muito dolorosas. “Lembrar é construir valores para o futuro”.
Por Míriam Leitão